Nancy Cardoso de Brasil, Raul Suárez de Cuba y François Houtart de Bélgica
cantando al sol como la cigarra
canções de “sumak kawsay”
Sumak Kawsay é herança e promessa. São nossas palavras nunca desaprendidas. “Buen Vivir” como relação com o passado dos povos originários e capacidade de resistência e criatividade do que queremos ser, de como queremos viver em comunidade... impregnados do uso de muitos! eco-dependentes! eco-socialistas! eco-feministas! nossas palavras mais queridas... estas e outras que vamos recolhendo, lapidando e trocando entre nós como aprendizado necessário e exercício de poder feito serviço e cuidado.
Estas palavras e seus poderes não foram esquecidas porque estavam e estão vivas na pele e nas relações cotidianas do povo pobre latino-americano. O idioma nunca conquistado, o dicionário não decifrado que se manteve nas lutas, nas bandeiras, nas marchas, nas orações, nos rituais, nas danças, nas comidas, nos desejos e nas canções! Por isso... e somente por isso! é que podem estar hoje nas constituições não como conceitos ou essências mas como expressão da luta de classes e as vontades das maiorias que vivem do trabalho e de cantar as antigas palavras novas.
Ah! o que seria de nós se nossos povos não fossem capazes de cantar suas dores e seus sonhos? Cantam os latino-americanos em tantas línguas não submersas... incorporando as sombras de tantas outras línguas que foram silenciadas. Cantam em pachamamas línguas, de abya-yalas melodias, quase esquecidas, quase impronunciáveis... em banto e yoruba reinventado em navios negreiros. Cantam nossos antepassados – abuelos e abuelas – os grunhidos da catequese, as melodias impostas pela estética do conquistador... e as canções escondidas em quilombos de beleza, o cantarolar das mulheres na beira do rio, o refrão insistente do índio feito obrero engolindo cobre e assobiando seu passado como indicativo de organização.
Foram estas canções que se recusaram a morrer que nos permitem hoje dizer assim “sumak kawsay”. São diversas as linhas melódicas, o jeito de cantar, o ritmo e seus instrumentos, pequenos gestos... grandes gestos, repetidos e reinventados. Um murmúrio, um sussurro, um urro, um grito, uma voz profunda e grave, uma voz aberta e fina, quase estridente, quase um gemido. Vozes sobrepostas, vozes em conflito. Ecos e monólogos. Canta a américa-latina numa síntese que não precisa ser... o diverso, o muito, o tanto são os materiais de cultura que temos e que somos. Ser latino-americano é conviver com o diverso, o muito e o tanto na expressão das maiorias que vivem do trabalho e vivem de cantar.
O limite geográfico não pode disfarçar a explosão de possibilidades. Contraditórias e incontáveis: somos muita coisa ao mesmo tempo. Já não há uma fala sossegada e redutora sobre nós mesmos. Negras, de todas as cores de todas as Áfricas. Indígenas, de tantas Américas inventadas e divididas. Latinas. Ibero-latinas de restos e expansões de um Portugal e Espanha que não existem mais. Falamos mil e tantas línguas diferentes. Cantamos mil e tantas línguas diferentes. Então, qualquer tentativa de dizer de um jeito só é traição.
Nascemos herdeiras da invasão que nos deixou pra sempre irreconciliáveis. Aprendemos a continuar cantando escondido, com medo e vergonha: aqui nossos povos se encontram! Vivemos às custas de modelos econômicos que nos iguala em desigualdades monstruosas e diferenças repetidíssimas: aqui nossos povos se encontram. Crescemos à sombra do Equador como se destino e sorte fossem as linhas que nos amarram ao sul: aqui nossos povos se encontram – nem destino nem sorte, nos une a luta por sumak kawsay.
As rádio e tvs dizem que não! que não sabemos cantar e nos enfiam goela abaixo as músicas que querem que cantemos. Música feito produto pelo capitalismo da mono-cultura. Os clipes, os cds, os mp 3 e 4 e 5... pobre música!!! sequestrada pela estratégia de inventar o consumo e vender mais um aparelho... entretenimento do lucro e dos sons descartáveis que ninguém mais vai saber cantar no próximo verão.
Em nossa busca e exercício de bien vivir temos que enfrentar o controle que o capitalismo e as elites insistem em ter sobre nossos ouvidos e cordas vocais. Mais do que estimular um cancioneiro a serviço da luta, um cancioneiro programático e funcional... precisamos de políticas culturais que resgatem e sustentem a diversidade do cancioneiro das maiorias que vivem do trabalho e de cantar. Nossa unidade latino-americana não precisa que cantemos as mesmas coisas... mas que nos escutemos entre o estranho e o difícil, a parte e o todo num profundo exercício de negociação e de crítica. Auto-crítica.
Entre tantos exercícios e expressões da cantoria latino-americana deixem que eu lembre uma delas... não porque é melhor ou mais importante mas porque quis ser esta multidão de poemas e tons, quis escutar as vozes quase inaudíveis e repartiu conosco lindas canções como quem distribui pão aos famintos. Deixem que eu lembre de Mercedes Sosa que nos deixou faz pouco tempo (4 de outubro de 2009) mas que lapidou palavras, versos e canções que nos tornaram mais fortes, mais criativos... tocados pela beleza e a tristeza da luta por terra e liberdade.
Haydée Mercedes Sosa nasceu em San Miguel de Tucumán, Argentina, em 9 de julho de 1935 filha de camponeses pobres. Aos 25 anos fez parte do Nuevo Cancionero um grupo de músicos comprometidos com mudanças sociais com raízes poéticas na cultura afro, cubana, andina e espanhola buscando expressar o cotidiano da vida do povo na Argentina. Em abril de 1967, Mercedes gravou “Mujeres Argentinas” já enfrentando os tempos difíceis das ditaduras militares no continente.
Estabelece um profundo processo de pesquisa e diálogo com compositores e grupos musicais latino-americanos catalizando expressões antigas e novas do cancioneiro latino-americano.
Canción Con Todos
Composição: Armando Tejada Gómez Y César Isella
Salgo a caminar
Por la cintura cósmica del sur
Piso en la región
Más vegetal del tiempo y de la luz
Siento al caminar
Toda la piel de América en mi piel
Y anda en mi sangre un río
Que libera en mi voz
Su caudal.
Sol de alto Perú
Rostro Bolivia, estaño y soledad
Un verde Brasil besa a mi Chile
Cobre y mineral
Subo desde el sur
Hacia la entraña América y total
Pura raíz de un grito
Destinado a crecer
Y a estallar.
Todas las voces, todas
Todas las manos, todas
Toda la sangre puede
Ser canción en el viento.
¡Canta conmigo, canta
Hermano americano
Libera tu esperanza
Con un grito en la voz!
Mercedes e seu grupo continuaram escutando as vozes de resistência e gravando autores não desejados tendo muitas de suas canções censuradas nos anos 70. Em 1979 foi presa depois de um show numa cidade universitária. Liberada, Mercedes podia ficar na Argentina mas... não podia cantar... foi quando se decidiu pelo exílio até 1982 quando volta e se junta às vozes pela liberdade e a justiça em seu país e no continente.
Escutar Mercedes é se apropriar do nosso dicionário musical, nossa lírica ressuscitadas nas greves e nas marchas contra a ditadura militar, as canções que ninaram presos políticos, os compositores desconhecidos que irritavam os poderosos, as frases pichadas nos muros: libertad! viva el pueblo! no passarán!
Mercedes recupera ritmos marcados para morrer, mistura os idiomas e faz com que os instrumentos nobres se curvem diante de milongas e zambas, orquestras virtuosíssimas nem imaginam os povoados distantes que fazem soar; crianças de cara suja atravessam os relógios e cravam o tempo e a história exactamente a esta hora hay un niño em la calle!
No cancioneiro de Mercedes somos perdoados de nossas iras e ódios porque pronunciados assim no grave da voz desta mulher os povos humilhados encontram ressonância e se fazem ouvir e a gente aprende as canções de justiça e juízo sem abrir mão das canções de amor e da paixão enorme: o homem que eu amo...la casa tuya, tu calle y tu patio. Gracias a la vida.
Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano
Y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando
Mercedes nos organiza, nos reúne, desenha um mapa onde cabemos todos e todas, o contorno musical de Mercedes ajunta e protege, convoca e envia, mostra e esconde. A música de Mercedes é carta que avisa que cayó mi hermano...“La carta que me mandaron me pide contestación, yo pido que se propale por toda la población”. Tomar e devolver as palavras dos bilhetes e dos panfletos, os manifestos e os recados: tudo é poesia, tudo pode ser musicado, tudo deve ser cantado.
Com Mercedes aprendemos que todo cambia e que a defesa da sabedoria ancestral não se confunde com imobilismo e essencialismos culturais.Os saberes estão em diálogo e é a vida em sua materialidade que vai tecendo palavras novas a partir de saberes milenários... todo cambia e o sumak kawsay implica na capacidade de recriar as relações como respostas novas a antigas perguntas... nossa capacidade de crítica de nós mesmos e de aprofundar nossas revoluções... todo cambia não como relativismo preguiçoso mas como compromisso com o bien viver de todos e todas:
Pero no cambia mi amor
Por mas lejos que me encuentre
Ni el recuerdo ni el dolor
De mi pueblo y de mi gente
(escutar alguns trechos de canções e fazer partilha em pequenos grupos)
nancy cardoso
dezembro de 2009
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